sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

POESIA BRINCANTE: Um pequeno tratado de brinquedos para meninos quietos, de Selma Maria

Alice Áurea Penteado Martha

A delicadeza e a propriedade do projeto gráfico-editorial do livro Um pequeno tratado de brinquedos para meninos quietos, de Selma Maria, cativam o leitor imediatamente. Os poemas resultam de pesquisa da escritora que inventariou as brincadeiras de crianças que gostam de brincar “quietas” no sertão brasileiro, mais precisamente em Minas Gerais, e as transformou em versos lúdicos, novas brincadeiras sonoras para leitores de todas as idades e lugares:


Fui muito curiosa, e entre os anos de 2003 e 2008, visitei várias vezes Morro da Garça, Cordisburgo e Andrequicé. Pequeninos lugares sertanejos onde me encantei com o brincar de muitos meninos cheios de alegria e imaginação. E a cada viagem eu aprendia mais, e queria saber mais e mais sobre esse tipo de brincar. (KUASNE, 2009:9)

Além dos paratextos “Brasinha, um menino quieto”, “Na barriga da poesia”, “O brincar do sertão” e “Fonte de brinquedo e poemas, a autora identifica jeitos criativos de brincar em capítulos temáticos: “Os brincares”, “Brinquedo-livro”, “Brinquedo-terra”, “Brinquedo-bicho”, “Brinquedo-cor”, Brinquedo-brinquedo”, “Brinquedo-pensamento”.
As ilustrações de Anne Vidal transportam nos traços as sensações e emoções dos versos; os tons “terra” das imagens, pequenas e delicadas, materializam sensorial e esteticamente a região ressequida do nordeste brasileiro, referência geográfica da obra de Selma Maria, com poemas que são exemplos fortes de que o cotidiano mais simples e humilde é motivo poético.
No capítulo “Os brincares”, Selma Maria poetiza sensações emotivas – “O que você prefere sentir?/Ouvir uma história medonha e ficar com frio na barriga?/Ou brincar na água a tarde inteira com a melhor amiga? (“Brincar de sensações”, p. 12)” -, auditivas – “Ouvir nas conchas/o som das ondas/do mar/ E o vaivém do ar...” ("Brincar de ouvir barulho”, p. 15) - , visuais – “Achar uma nuvem que passa no céu,/parecendo um medonho jacaré,/e vira um outro bicho qualquer” (“Brincar de olhar”, p. 20). Em “Brinquedo-livro”, os versos remetem os leitores às histórias, alegres, tristes, divertidas que encantam suas vidas:
:
Histórias compridas

Histórias da carochinha
histórias para boi dormir.
Uma foi feita para enrolar,
a outra, feita para mentir.

Uma cobra é muito comprida
quando nasce e quando corre.
Uma história é muito comprida
quando é chata e nunca morre.

(KUASNE, 2009: 26)

Os poemas do capítulo “Brinquedo-bicho” tratam de bichos que assemelham a brinquedos como os tatus-bola e de brinquedos que imitam animais, feitos pelas crianças no sertão brasileiro, que se divertem com o pouco que a natureza difícil lhes concede. No primeiro caso, temos os versos de “Bola” – “Tatu bola é nome dele./Esconde todo embolado na sua mão,/ ou muito acanhado pelo chão” (p.41); no segundo, a fatura do boi de sabugo de milho, em “Boi bonito”: “Fazer um boi todo malhado/era o brinquedo que eles tinham inventado./Precisava torrar muito sabugo de milho/para uma boiada formar/e com o fio do barbante puxar” (p.42). Em “Brinquedos-cor”, o colorido da terra e dos elementos da natureza:
:
Verde

Na folha o camaleão desaparece
e no tomate vermelho se enobrece.
No verde a lagarta se esconde
e surge no buraco-da-fruta-do conde.

(KUASNE, 2009: 46)

Ao resgatar brincadeiras infantis das comunidades do sertão mineiro, os poemas de Selma Maria comprovam a tese de Huizinga (1971), segundo a qual as potencialidades do jogo assemelham-se às da poesia e essa afinidade pode ser constatada na estrutura da imaginação criadora:

Boi bonito

Êta, meninos inventadeiros!
Como são bagunceiros e arteiros
esses filhos de violeiros, boiadeiros.
Inventam brinquedos nos fogareiros.
Outro dia até um sabugo de milho
foi para a fogueira,
brincar de Joana e morrer queimado.
Mas que nada!
Era a brincadeira da criançada!
Fazer um boi todo malhado
era o brinquedo que eles tinham inventado.
Precisava torrar muito sabugo de milho
para a boiada formar
e com o fio do barbante puxar.

(KUASNE, 2009: 42)