O ZUM-ZUM-ZUM DA POESIA*
Alice Áurea Penteado Martha
Zum-zum-zum e outras poesias (Cia das Letrinhas, 2007), de Lalau (autor) e Laurabeatriz (ilustradora), reúne poemas de três livros anteriormente publicados pela Cia das Letrinhas e laureados com o selo de “Obra Altamente Recomendável”, na categoria Poesia, pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ): Bem-te-vi (1994), Girassóis (1995) e Fora da gaiola (1995). Da interação entre traços e letras resulta obra marcada por vivências e sentimentos da infância, cuja plenitude imagética se constitui a partir de uma perspectiva lúdica.
O projeto gráfico da obra provoca os sentidos dos leitores de todas as idades. Com imagens em cores vibrantes, que dialogam com o título da antologia, na capa e contracapa – a abelhinha sobrevoando girassóis ao lado do bem-te-vi –, e o miolo em papel couché, o livro pode intensificar, pelo contato visual e tátil, o prazer sensorial dos pequenos leitores que o folheiam. A folha de rosto, dupla, estampa duas grandes figuras de garotas que, de costas e com roupas em tons fortes de verde e roxo, lêem o poema-epígrafe, porta de entrada de um mundo de emoções, cores, imagens e sons:
Quando
Uma palavrinha
Encontra
Uma irmãzinha
Ou uma prima,
Isso se chama
Rima.
(Epígrafe)
Para cada um dos 39 (trinta e nove) poemas, há imagens correspondentes, emolduradas como telas, que ocupam toda a página contígua. Quando o poema é longo, com mais de uma página, as ilustrações transformam-se em vinhetas, caso de Barata tonta, O pente, Sopa de letrinhas, Infância, Amor, História da banana, Infância 2, ABC da passarada. Em Amizade, que verbaliza o trabalho das formigas, a imagem, horizontal, acompanha o cordão dos insetos, que se espraia por duas páginas. Esses recursos promovem, com arte, o diálogo entre o verbal e o não-verbal, e propiciam o desenvolvimento do senso estético das crianças.
A disposição dos poemas não obedece a um agrupamento temático, mas é possível observar que podem compor dois conjuntos: um trata de pequenos animais, como passarinhos, peixes, tartaruga, porco-espinho, sapos e insetos, cujos sentimentos estão sempre em intensa sintonia com as sensações e atitudes das crianças (Quem tem asas, Canário, Filharada, Zum-zum-zum, Fora da gaiola, Tartaruga, João-de-barro, Beija-flor, Curió, Namoro espinhudo, Amizade, Pardal, Bem-te-vi, ABC da passarada, Peixinho, Quero-quero, Brejo, Coruja, Urubu, Barata tonta, Tiziu, Vagalumes, Gaivota); outro grupo de poemas ressalta objetos, acontecimentos, relacionamentos e emoções também peculiares às vivências infantis (Sopa de letrinhas, Infância, O pente, Melequinha, Vô, Malabarismos, Riminhas, Amor, Palhaço, Mar, A história da banana, Paraíso, Eclipse, Infância 2 Plim-plim. Singelos, todos priorizam conteúdos relativos à percepção do mundo pela criança, veiculados pela perspectiva de um eu poético que assume a visão infantil, o que resulta em poemas muito próximos de seus destinatários: “Uma formiga é amiga de outra formiga que é amiga de outra formiga que é amiga de outra formiga...” (Amizade).
Os versos de Lalau comprovam que qualquer assunto pode ser do interesse das crianças, desde que lhes seja apresentado com clareza e com respeito ao seu desenvolvimento intelectual e emocional. Neles, não se observa prioridade para uma determinada abordagem. O essencial parece ser que as produções cativem seus leitores pelo emprego da fantasia e pela valorização da sensação que os transporta do mundo real para o possível, construído pelas imagens e símbolos do poema:
É parecido
Com um
Campo florido.
Tem sabor de pudim
De caramelo,
Com casquinha
De açúcar queimado
E cobertura
De marshmallow.
[...]
(Amor, p.58)
A presença do humor, recurso sempre bem-vindo nos versos infantis, consolida a relação intrínseca entre a poesia e seus destinatários. No poema Melequinha, por exemplo, o hábito infantil de “tirar meleca do nariz”, reprimido pelos mais velhos, é motivo de diversão para os leitores, a partir da personificação da sujeira pelo eu poético, recurso que desestabiliza o medo infantil do escuro: “Que nariz/Escuro!/Eu tenho/medo/ Ei, me tira/Daqui/Com/O dedo?” (p.32). Por vezes, é a imaginação infantil, no estilo de “reforma da natureza”, de Emília, a boneca de Lobato, que brinca com “a ordem das coisas” no mundo, como em João-de-barro:
:
:
Já pensou
Se alguém
Colocar rodinhas
Na casinha dele?
Aí, o joão-de-barro
Passa a se chamar
João-de-carro!
(p.26)
As estruturas formais dos poemas, adequadas à faixa etária a que se destinam, permitem e incentivam a entrada dos leitores e sua participação na construção dos sentidos dos textos. Os elementos próprios do gênero – versos, estrofes, rimas, ritmo e uma linguagem marcadamente simbólica - não se perdem em imagens muito elaboradas ou pelo emprego de estruturas lingüísticas inacessíveis. A presença de rimas não se mostra obrigatória; os poemas confirmam seu caráter musical e lúdico também por meio de jogos sonoros, assonâncias, aliterações, onomatopéias e repetições, entre outros recursos. Quanto aos aspectos relativos à métrica, há versos que mantêm o rigor, notadamente, aqueles mais simples e populares, como existem aqueles construídos ao sabor da liberdade e da emoção, sem medidas definidas a priori. O que realmente importa é que os recursos escolhidos pelo poeta mostram-se adequados à expressão das idéias e emoções veiculadas pelos poemas, e permitam às crianças um encontro prazeroso com os versos:
Chorei no escuro,
Faltei na escola,
Descobri um tesouro,
Libertei passarinho,
Fui uma história em quadrinho.
(Infância, p. 19)
Um fantasma
Com asma.
Um anjo
Tocando banjo.
Um macaco
Vestindo casaco
Uma lombriga
Com dor de barriga.
Uma chuva
Com suco de uva.
E um final
Com tchau-tchau!
(Riminhas, p.46)
O poema “Quero-quero”, composto por três quadras singelas, pode ser um bom exemplo de como os versos, brincadeiras sonoras e lúdicas, devem cumprir função formadora, sem doutrinar seus pequenos leitores. O jogo de significados proposto pela repetição do termo “quero”, que ora se refere ao pássaro “quero-quero” – “Sou porteiro/De fazendas./Guardião das terras” – ora é a primeira pessoa, do verbo “querer”, o “eu infantil”, favorece uma leitura mais ampla do texto, valorizadora dos desejos e aspirações do ser humano de todas as idades: “quero voar”, “quero cantar”:
Tudo que
Espero
É ser sempre
Quero-quero.
(Quero-quero, p.54)
A retomada de atos cotidianos e simples, no poema Vô, faz da repetição dos dois primeiros versos de sentido afirmativo, nas três primeiras quadras – “Meu vô/Me ensinou” - um recurso importante para escavar as lembranças e ressaltar o caráter lúdico das relações entre avô e neto. O significado da forma verbal “ensinar” é despragmatizado pelos resultados da ação: “pescar lambaris”, “o pio das aves”, “alguns palavrões”. Na última estrofe, de seis versos, ocorre a ampliação do espaço verbal para o extravasamento da subjetividade, que se espraia com o emprego do verbo “gostar” e com a oposição ao caráter afirmativo das estrofes anteriores:
Gostar
Do meu avô
Ninguém
Me ensinou,
Porque isso
Nem/Precisou.
(Vô, p. 40)
Os poemas de Lalau e as ilustrações de Laurabeatriz, com temática adequada aos jovens leitores e realizada de modo a ampliar suas referências estéticas e culturais, revelam uma consciência nítida de que as obras para a infância devem assumir a ótica infantil, enquadrando a vida nas lentes da inocência, sem deixar de refleti-la em suas manifestações mais cotidianas e verdadeiras. A interação entre o verbal e o não-verbal, ao promover a valorização das crianças, destinatárias dos versos, provoca nelas a reflexão, o auto-reconhecimento e a conseqüente humanização.
Enfim, a metáfora catalizadora – criança é poesia – é realizada pelos poetas dos versos e dos traços, por meio da tematização do cotidiano infantil e pela adoção de um ponto de vista não convencional, tanto da linguagem quanto do recorte do real.
O alecrim
Foi plantado no xaxim.
A–A-Atchim!
Fez o espirro do Benjamin.
É de cetim
A fantasia do arlequim.
O papa-capim
Fugiu do jardim.
E assim
Este livrinho chega ao fim.
(Plim-plim, p. 84)
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NOTA:
* Texto publicado em RECHOU, Blanca-Ana Roig; LÓPEZ, Isabel Soto; RODRÍGUEZ, Marta Neira (Coord) A poesia infantil no século XXI (2000-2008). Vigo: Edicións Xerais da Galicia, 2009.